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Notas para mim mesmo – 9

Publicado: 18 de janeiro de 2024 em Hã?
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“Hoje em dia ninguém mais tem a coragem de inventar algo novo. Fala-se apenas sobre como as coisas já são e se continua lançando as mesmas ideias antigas. A realidade envelheceu e ficou senil; está sujeita às mesmas leis que qualquer organismo vivo – envelhece. Assim como as células do corpo, seus componentes mais elementares – os sentidos – sucumbem à apoptose. A apoptose é uma morte natural, provocada pelo cansaço e pelo esgotamento da matéria. Em grego essa palavra significa “a queda das pétalas”. As pétalas do mundo caíram.” 

– Olga Tokarczuk, Sobre os ossos dos mortos

Em cima de uma mesa da madeira, um notebook, um teclado um copo com uma dose de Domecq e uma garrafa de Heineken.

Então vamos falar um pouco sobre o meu processo de criação de um roteiro de histórias em quadrinhos. Quem quiser detalhes mais técnicos sobre isso tudo, inclusive com exemplos práticos, fiz em 2019 um pequeno e prático guia de roteiro chamado “Print de Roteiro” e ainda possuo alguns exemplares disponíveis para venda. É só entrar em contato que fazemos um bem bolado.

Sem mais delongas, vamos que interessa:

Parte 1 – Ruminando ideias

Esta etapa pode durar de dias até anos, e ela ocorre toda na sua mente. Basicamente, é você pensando sobre as suas ideias, o quanto elas são viáveis, a trama de uma HQ como um todo, algumas das melhores cenas e alguns diálogos, este tipo de atividade que parece que não vale nada porque não gera a porra de um entregável, mas é importante pra caralho, porque muita coisa é resolvida logo aqui.

Ocasionalmente, é possível fazer algumas anotações para alguma ideia não se perder (Sim, isso acontece), como também pode ser feita de maneira coletiva, muitas vezes com o desenhista ou o editor (No meu caso, acontece também com a minha noiva).

O foda desta etapa é que muitas vezes ficamos nela, sem partir para a parte concreta do plano, e isso pode deixar a ideia de saco cheio, de modo que ela vaza e vai procurar alguém que de fato faça algo concreto com ela. Sim, acredito que as ideias são seres vivos e conscientes e, quando sacam que tu não vai coloca-la no papel e mostra-la para o público (sim, isso é importante para ela), vai embora atrás de alguém que o faça.

Eu mesmo já tive várias ideias que ficaram comigo por anos e, de repente, vejo aquela coisa única e super original sendo publicada por alguma outra pessoa.

Então alimente suas ideias e as coloque no mundo, ou elas vão embora encontrar alguém que vai fazer.

Parte 2 – Construindo o cenário

Esta etapa rola mais quando você está fazendo uma série regular, que vai ter que mostrar como o mundo funciona ao longo de várias edições, mas pode rolar para histórias fechadas também.

Aqui também é uma etapa em que é muito fácil se perder e ficar nela para sempre. Aí tu fica ANOS construindo este mundo para abrigar a sua história ao invés de escrever a história de fato.

Olha, como bom mestre de RPG, amo construir mundos. Fazer mapas, nomes de cidades, bairros, personalidades, etc e tal (tanto que, em projetos em conjunto, sempre fica pra mim o cargo de “World Builder”), mas a sua história precisa disso tudo? A resposta normalmente é não.

Então o que faço e recomendo é algo mais fácil e prático: construa o necessário para a trama que está escrevendo e deixe o resto para ser feito quando a sua história precisar. Se você for bom no que faz, vai enfiar os elementos posteriores de maneira tão orgânica que vai parecer que estiveram lá desde sempre e os leitores vão admirar seu planejamento de ter TUDO PRONTO DESDE O COMEÇO, independente de isso ser verdade ou não. De qualquer maneira, para quem lê, o resultado é o mesmo: um mundo vivo, complexo e coeso. Como se chegou nele pouco importa.

Adendo 1: muitas destas ideias do mundo aparecem na fase anterior, a caminho do trabalho, lavando louça ou no meio de uma reunião importante de trabalho. Anote todas e, de preferência, em um lugar em que elas possam ser encontradas depois, por favor.

Adendo 2: se você é daqueles que ama criar mundos complexos e completos, sem problemas, mas não enfie TUDO nas primeiras histórias ou a pessoa vai se sentir lendo uma enciclopédia e não uma HQ (Sim, Tolkien estou falando com você. Sim, eu sei que ele fazia livros e não HQs, mas você entendeu meu ponto, então foda-se). A dica usada para criar as coisas também vale para apresentá-las, aos poucos, conforme a trama for precisando.

Adendo 3: por outro lado, se você é como eu e curte colocar uns easter eggs ao longo da obra, tanto como piadas internas como para dar um gostinho de que o mundo é mais do que aquilo que vemos na trama principal, pode fazer sem medo, independente de já ter algo já construído para aquilo ou não. Acredito ter ficado claro que podemos resolver isso depois. Apenas tenha em mente que este tipo de coisa NUNCA pode ofuscar a trama principal da obra e, de preferência, deve ser descoberto em uma segunda ou terceira leitura (tem umas coisas em DestiNation que quando revelarmos vai ser engraçado ver leitor caçando as coisas desde o primeiro número, hehehehehehe…).

Adendo 4: pelamordedeus, JAMAIS faça uma lista de easter eggs em uma primeira edição da sua HQ. Deixa os leitores descobrirem estas coisas sozinhos ou quando você contar, anos depois. Conteúdo extra é para obras consagradas, republicações ou edições definitivas /absolute, não para o seu primeiro Catarse.

Este texto já ficou muito maior do que eu estava esperando e estourei o tempo que havia reservado para escrever, do modo que teremos uma Parte 2 (e, provavelmente, uma Parte 3). Espero que seja útil para vocês.